O artigo em que os comentários bíblicos de João
Calvino são colocados em ordem de suas respectivas impressões é apenas um
pequeno e singelo esforço de resgatar o trabalho desse incansável reformador do
século XVI (ver artigos relacionados).
Seus Comentários influenciaram profundamente as
igrejas não somente da tradição reformada; e um interesse renovado por eles e
seu estudo não só contribui para uma melhor compreensão de Calvino e sua
Teologia, mas também produz um profundo impacto na mentalidade e na vivência da
igreja evangélica e cristã desse século XXI.
Concordamos de que Calvino foi, por várias
razões, um comentarista único e extremamente esclarecedor. Sua educação acadêmica
humanista, seu amplo conhecimento criterioso do trabalho de outros intérpretes
da Bíblia que o antecederam, e sua competência exegética e compreensão da mentalidade
bíblica – tudo isso o tornava um intérprete apropriado dos escritos bíblicos.
Nos 101 volumes do “Corpus Reformatorum” (série
que reúne as composições literárias dos principais reformadores do século XVI),
os escritos de João Calvino totalizam 59 obras volumosas. O Dr. Rev. Martin
Lloyd-Jones, prolífico escritor calvinista, disse acerca do trabalho literário
de Calvino: “Como um só homem pôde fazer tudo isso, e em acréscimo pregar
com regularidade, é-nos espantoso contemplar” [1]
E ainda temos um agravante que é o
fato de Calvino ter uma saúde bastante debilitada, cujas enfermidades o
afligiam continuamente. O Rev. Wilson Castro Ferreira, um de seus biógrafos
brasileiros registra: “escreveu doente, escreveu em meio às mais acirradas
lutas, escreveu no leito, ditando aos seus secretários, escreveu até altas
horas da noite, mesmo enfermo e, segundo testemunho do seu primeiro biógrafo,
Theodoro Beza, ele escreveu até oito horas antes da sua morte” [2].
Seu trabalho somente foi interrompido por sua morte prematura antes mesmo de completar
cinquenta e cinco anos de vida.
Sua obra Magnum opus as Institutas, ou Tratado
da Religião Cristã (ver artigos relacionados), teve sua primeira edição
publicada em 1536, o ano seguinte após ser escrita. Começou como um pequeno
livro de 516 páginas e apenas seis capítulos. Todavia, em sua edição de 1539 já
estava com 17 capítulos, mas que em continua revisão e acréscimos pelo
reformador genebrino transformou-se em quatro livros com um total de oitenta
capítulos. Teve ao menos nove edições de próprio punho, escritas em latim e
francês em uma época em que as condições de trabalho eram mínimas à luz de vela
e lampião, pena e tinteiro. As Institutas consumiram cerca de 25 anos seguidos
de árduo trabalho de Calvino.
Seus comentários bíblicos dos livros das
Escrituras foram produzidos para complementar suas Institutas. Ele escreveu
comentários de 24 livros do Antigo Testamento, e do Novo Testamento deixou de
comentar apenas a 2ª e a 3ª epístolas de João e o Apocalipse. No formato online
e PDF é possível encontrá-los. Das editoras a mais popular é a coleção
produzida pela editora Baker Book House que os reúnem em 22 volumes que
totalizam mais de 11.000 páginas! Infelizmente pessoas que não leram nem ao
menos 10% de suas obras estufam o peito e se autodenominam de calvinistas.
O primeiro comentário bíblico de João Calvino
foi sobre a epístola aos Romanos, preparado quando o reformador ainda se
encontrava em Estrasburgo, em 1539. O livro está dedicado a Simão Grinée,
reformador em Basiléia e mestre de Calvino no grego e teologia. Os últimos
comentários escritos por João Calvino foram os de Josué e Ezequiel, que
compreende apenas os vinte primeiros capítulos. A edição escocesa de 1850 traz
a seguinte nota ao Comentário de Ezequiel: “Depois de terminar esta última
preleção (sobre o cap. 20), o ilustre João Calvino – o Teólogo – que havia
estado previamente enfermo, começou a sentir-se tão fraco, que foi compelido a
buscar o leito e não pôde mais prosseguir na explicação de Ezequiel. Esta foi a
razão de parar no cap. 20º e não terminar uma obra tão auspiciosamente começada”.
Um
número extraordinário de comentaristas posteriores atesta positivamente a
excelência dos comentários de João Calvino, incluído o professor Tiago Arminius
(1560-1609), que se opôs tenazmente à teologia calvinista da
predestinação/eleição incondicional, mas que recomendava aos seus alunos a
leitura dos comentários de Calvino que na sua opinião não havia melhores [3].
Seus comentários representam uma ruptura com o método alegórico e complicado de
exposição dos eruditos escolásticos. Para ele um bom comentário bíblico tinha
que ser fiel à ideia central do texto, sem subterfugio e extraindo o seu
sentido natural. Em seu comentário de 2Coríntios 3.6, Calvino faz questão de explicar
a razão pela qual efetivou a mudança do método alegórico de interpretação, até
então comumente utilizada, em favor da ênfase no sentido literal,
gramático-histórico do texto.
Seguindo uma ordem cronológica o primeiro
comentário bíblico de João Calvino foi sobre a epístola aos Romanos. Para ele,
assim como tantos outros antes e depois dele, visto que foi escrita após mais
de vinte anos de vida cristã, de maneira que nela se reflete a maturidade e
aprendizado maturado do velho apostolo, se constituindo então na principal
porta de entrada para uma ampla exposição das Escrituras que era o objetivo
maior de Calvino. De maneira que, ele tem plena consciência que está diante de
um texto que lhe apresenta as doutrinas fundamentais do ensino cristão genuíno
que está sendo resgatado pelos reformadores.
O comentário da Primeira aos Coríntios
chegou a Estrasburgo em novembro de 1545 e sua impressão é anunciada para a
feira da primavera em 1546, o que de fato ocorreu. A Segunda Epístola aos
Coríntios foi publicada por ele apenas alguns meses depois de seu
Comentário sobre a Primeira Epístola, sua dedicatória da Segunda Epístola, data
de 1º de agosto de 1546, enquanto a dedicatória da Primeira Epístola data de 24
de janeiro de 1546. Nesse período Calvino enfrentava muitas lutas e
dificuldades, teve que lidar com o desanimo dos genebrinos, por causa das
ameaças do Imperador Carlos V, a reação negativa às pregações e direcionamentos
dados por ele e as falsas acusações sobre seu ensino doutrinário. Mas, ele
encontrou nestas duas epístolas paulinas o consolo e animo para continuar seu
ministério pastoral.
Ao enviar o trabalho de Segunda Coríntio para
ser impresso em Estrasburgo e devido a longa espera de confirmação que o
documento havia chegado, ele resolveu que sempre haveria de fazer uma cópia
antes de enviá-los. Mas devido a guerra entre o imperador Carlos V e os
príncipes alemães (1546-1547) esta e as demais acabaram sendo impressas em
Genebra.
Certamente uma das razões de Calvino
investir seu precioso tempo com as correspondências paulinas aos crentes em
Corinto é que o seu contexto eclesiástico conturbado e até mesmo pecaminoso
tinham relações muito próximas do contexto histórico eclesiástico que Calvino
estava enfrentando em Genebra. Todavia, ao lermos seus comentários, não
transparece toda essa convulsão eclesiástica social-política, mas parecem terem
sido preparados em um momento tranquilo e em pastos verdejantes.
Na comunidade de Corinto proliferavam
os falsos mestres que traziam suas novidades e incendiavam as mentes e corações
daqueles cristãos, o que estava ocorrendo continuamente na comunidade
genebrina. Portanto, enquanto Calvino se debruçava nas literaturas de Paulo aos
Corintos ele estava armazenando munição para rebater seus próprios invasores em
sua comunidade. E como professor e mestre nas escolas e seminário os argumentos
exortativos de Paulo aos Corintos se constituíam em preciosas ferramentas para
colocar às mãos de alunos, professores e mestres que vinham de todas as partes
da Europa e retornavam adequadamente preparados para responder as demandas de
suas próprias comunidades locais.
Dois fatores externos produziam
apreensão ao coração pastoral de Calvino que encontra paralelo no contexto
histórico de Paulo aos Corintos. Como pastor ele tinha que acalmar e animar
constantemente os membros de sua igreja pois o imperador Carlos V ameaçava
constantemente perseguir as igrejas reformadas; mas assim como Paulo nada
afligia mais o coração pastoral do que o contexto depravado da sociedade de
seus dias. Constantemente se levantavam falsas acusações contra Calvino,
mormente apresentadas por pessoas desgostosas de seu ensino e pregações que confrontava
abertamente a vivência desconectada do ensino bíblico da vida delas. Assim como
em Corinto muitas vezes Paulo foi questionado sobre suas credenciais apostólicas,
sua capacidade pedagógica (oratória fraca) e até mesmo sua aparência física, em
Genebra Calvino era alvo constante de toda sorte de críticas sem quaisquer
critérios ou fundamentos. Infelizmente ainda hoje os adversários de Paulo e
Calvino continuam a utilizar tais artifícios covardes contra ambas as figuras
históricas. Os inimigos da verdade nunca tiveram caráter.
As dedicatórias que antecedem seus
comentários são sempre preciosas. Mas tudo indica que nesta primeira epístola
aos Corintos houve um lamentável episódio. Originalmente Calvino havia feito
uma dedicatória à Tiago da Borgonha, senhor de Falais e Bredam, de sangue da França,
descendente de São Luís, bisneto de Filipe, o Bom, duque da Borgonha, que
rompendo com a igreja romana, por muitos anos frequentou a igreja
reformada em Genebra e mantinha uma amizade pessoal com Calvino. Mas após os
embates entre o reformador e o frade carmelita, parisiense e médico,
Jérôme-Hermès Bolsec, no ano de 1551, ele e sua família se afastaram de Genebra.
Esse afastamento pode ou não implicar em igual comportamento em relação aos
princípios de fé reformada, mas tudo indica que tenha pesado a sua discordância
da forma contundente com que Calvino propôs punir o comportamento de Bolsec,
que era também o médico do nobre e da sua família. Essa dissensão tornou-se
crescente quando Tiago defendeu abertamente o comportamento opositor de Bolsec
em Genebra, interrompendo o processo que corria contra ele, bem como igualmente
o defendeu no judiciário de Berna que acolheu calorosamente a solicitação, a
ponto de Farel,
reformador de primeira ordem e amigo de Calvino, não ter dúvidas em apontar
essa intervenção a causa da relutância das igrejas suíças em endossar a
teologia calvinista. De maneira que, não apenas recusaram abrir processo
judicial contra Bolsec, como exortaram tolerância e moderação aos genebrinos.
Esse seria um entre tantos embates que
Calvino enfrentou no transcorrer de sua vida eclesiástica, mas um dos
desdobramentos desta questão foi a grande decepção do reformador genebrino em
relação ao comportamento antagônico de Tiago, o qual levou a um rompimento
definitivo da amizade, de maneira que Calvino suprimiu a Dedicação que havia
feito a ele e a substituiu por outra dirigida a Galliazus Caracciolus,
descendente e filho único e herdeiro do Marquês de Vico. Ele menciona essa
substituição na sua segunda dedicatória:
Quem
dera que, quando este Comentário viu a luz pela primeira vez, eu não tivesse
conhecido de todo, ou então tivesse conhecido profundamente o indivíduo cujo
nome, até então inscrito nesta página, agora estou sob a necessidade de apagar!
Não tenho, é verdade, medo de que ele me tranquilize com inconstância, ou
reclame que eu lhe tirei o que eu havia dado anteriormente, por ter
intencionalmente feito dele seu objetivo, não apenas para se afastar o máximo
possível de mim pessoalmente, mas também para não ter nenhuma ligação com nossa
Igreja, ele não deixou a si mesmo um justo motivo de queixa. É, porém, com
relutância que me desvio do meu costume, de modo a apagar o nome de qualquer um
dos meus escritos, e entristece-me que esse indivíduo tenha abandonado a
elevada eminência que lhe eu lhe tinha atribuído, 19 para não estender uma luz
aos outros, como era meu desejo que ele o fizesse. 20º Como, no entanto, não
está em meu poder remediar esse mal, que ele, no que me diz respeito, permaneça
sepultado, pois desejo ainda agora poupar seu crédito ao não mencionar seu
nome.
Por sua vez, Galliazus Caracciolus, era um nobre que havia
abandonado a Itália, após sua conversão, e passou a morar em Genebra. Ali
permaneceu até sua morte e estabeleceu uma longa amizade com Calvino até a
morte desse. Sempre deu um testemunho digno de uma fé e prática reformada.
Atestada pela dedicatória que o reformador genebrino lhe faz nas edições
posteriores e definitiva de seu trabalho da primeira epístola ao Corintos.
Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog
Reflexão Bíblica
http://reflexaobiblica.spaceblog.com.br/
Contribua para a manutenção deste blog
Artigos Relacionados
Calvino:
Comentários Bíblicos em Ordem Cronológica
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2020/07/calvino-comentarios-biblicos-em-ordem.html?spref=tw
Calvino
e Suas Institutas – Uma Leitura: Introdução
Calvino
Singularidades: O Motivo Primário Para Escrever as Institutas
https://historiologiaprotestante.blogspot.com/2020/03/Calvino-singularidades-o-motivo.html?spref=tw
Protestantismo:
Os Quatro João (John) da Reforma
Notas
[1]
Lloyd-Jones D. M. Os puritanos: suas origens e seus sucessores. São
Paulo: PES, 1993, p. 114.
[2]
Wilson C. Ferreira. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas: LPC,
1985, p. 140.
[3]
The works of James Arminius. Vol. I. Grand Rapids: Baker Book House,
1996, p. 295.
Referências
Bibliográficas Citadas
[1]
Lloyd-Jones, D. M. Os puritanos: suas origens e seus sucessores. São
Paulo: PES, 1993, p. 114.
[2]
Gonzalez, Justo L. A era dos reformadores. Vol. 6. São Paulo: Vida Nova,
1989, p. 111.
Referências
Bíblicas Geral
CALVIN,
Jean. As Institutas ou Instituição da Religião Cristã (da
edição original francesa de 1541). Tradução e leitura de provas Odayr Olivetti;
revisão e notas de estudo e pesquisa Herminsen Maia Pereira da Costa. 1ª
edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.
D'AUBIGNÉ,
J. H. Merle. The Reformation in Europe in the time of Calvin. Vol.
VIII. Translated William L. R. Cates. New York: Robert Carter and Brothers,
1879.
FERREIRA,
Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas, SP:
Edição de Luz Para o Caminho, 1985.
GREEF, Wulfert. The Writings of John Calvino: An Introductory Guide. Trans. L. D. Bierma. Grand Rapids: Baker, 1989.
HALSEMA,
Thea B. Van. João Calvino era assim. Editora Os Puritanos/Clire,
2009/2011.
PARKER,
Thomas Hnry Louis. Calvino's New Testament Commentaries.
Westminster John Knox Press, 1993.
Você gostou deste artigo? Você acha que outras pessoas gostariam de ler este artigo? Certifique-se de compartilhar esta postagem em suas redes sociais!
Seria
muito bom ouvir de você! Deixe-me saber o que você achou desta postagem,
deixando um comentário abaixo.