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quarta-feira, 1 de maio de 2019

História da Igreja Cristã: A queda do Império Romano Ocidental e Ascensão da Igreja de Roma



Algo até então inimaginável, o grande e milenar Império Romano começa a desmoronar, inicialmente do lado Ocidental e posteriormente do lado Oriental.
Esta queda longe de ser repentina ela vinha se desenhando ao longo do último século e não sem razão começa a se buscar os fundamentos de um Império Romano-Cristão. Após o reinado de Teodósio, com exceção do curto reinado de Majoriano, o Império vai se deteriorando rapidamente em todas as suas instâncias política-social-econômica proporcionando uma crise de autoridade pública generalizada. Em meio ao caos emerge a auctoritas de Roma como elo entre o mundo antigo e a nascente Idade Média. A Igreja soube como nenhum outro segmento social ocupar progressivamente os espaços deixados vazios pelo poder imperial. Creio que as palavras de Peter Brown nos fornecem uma significativa percepção deste momento:
Neste sentido, o cristianismo latino do início da Idade Média tem menos a ver com a conversão de Constantino do que com a geração perturbada, mas imensamente criativa – uma geração de invasões bárbaras, guerras civis e enfraquecimento da autoridade imperial – que coincidiu com os anos de maturidade de S. Agostinho. O próprio Agostinho, baptizado em 387 e eleito bispo de Hipona, na costa do Norte da África (a moderna Anhangá/Boné, Argélia) em 395, veio a falecer em 430 com idade de 76 anos, num mundo já muito diferente daquele em que tinha crescido (1999, p. 55).
Em 337 d.C., caíram as barreiras na fronteira do Império e hordas de bárbaros (o nome que os romanos aplicavam a outros povos, com exceção dos gregos e judeus) Ocidental começaram a entrar em todos os lugares nas províncias inermes. Em menos de cento e quarenta anos, o Império Romano do Ocidente, que existia há mais de mil anos, deixou de existir.
§  Por volta de 450 d.C., os terríveis hunos sob a liderança de Átila invadiu a Itália e ameaçou destruir não apenas Roma, mas todos os demais reinos ao redor. Então os povos bárbaros (não romanos, gregos ou judeus) que tinham invadido a Europa e se estabelecido como “reinos” diferentes, os godos, vândalos e francos,[1] concomitantemente com a liderança de Roma, na figura do Papa Leão Magno (†460), lutaram e venceram o arrogante Átila e seus hunos, na batalha de Chalons (451 d.C.) no norte da França. Assim, a Europa inicia o desenvolvimento de sua própria civilização, sob a liderança de Roma.
§  Os bárbaros liderados por Odoacro invadem e conquistam a cidade de Roma, depõe o último e jovem imperador do Ocidente, Rômulo Augusto (475-476) e fez-se proclamar rei da Itália. Assim, de forma melancólica extingue-se o último vestígio do antes grande Império Romano.
Abaixo temos a descrição por duas perspectivas diferentes destes acontecimentos:
§  Testemunho de Orígenes, líder e escritor cristão:
“Meu coração estremece pensando nos desastres do nosso tempo. Eis mais de vinte anos que entre Constantinopla e os Alpes Julianos o sangue é derramado diariamente… Quantas damas, quantas virgens de Deus, quantos corpos nobres e delicados não foram joguetes dessas feras selvagens? Os Bispos são levados em cativeiro, os sacerdotes assassinados juntamente com clérigos de diversas Ordens; as Igrejas são devastadas, os cavalos amarrados junto aos altares de Cristo como em estrebaria; os despojos dos mártires são extraídos da terra. Em toda parte, há luto, gemidos e a sombra da morte. O mundo romano desmorona, e a nossa cabeça orgulhosa não se dobra… Tivesse eu cem línguas, cem bocas, uma voz de bronze, nunca, nunca eu poderia contar tantas desgraças!” (Epístola IX 16).
“Quem teria acreditado que essa Roma, construída sobre vitórias obtidas em todo o universo, viesse um dia a desmoronar? … Quem teria acreditado que, para os seus povos, Roma viria a ser mãe e sepulcro? … Que todas as regiões do Oriente, do Egito e da África se cobririam de escravos (homens e mulheres) vindos de Roma, outrora senhora do universo? ” (Prefácio ao livro III, XXV).
§  Uma visão diferente narrada por Salviano, sacerdote de Marselha (? 480 d.C.):
“Os invasores iam penetrando cada vez mais, e o mundo não acabava… em vez de deterem sua atenção apenas na barbárie dos novos povos, fizessem os cristãos o seu exame de consciência; não bastava professar a fé católica, para esperar as bênçãos de Deus; era preciso viver de acordo com essa fé;” Ele passa a fazer uma comparação entre as duas civilizações: ... os vícios da civilização romana, dada aos prazeres e espetáculos fúteis; os habitantes do Império são coniventes com graves abusos, como a embriaguez, a luxúria, a mentira, os falsos juramentos, o orgulho… Ao contrário, os invasores têm seus traços de vida positivos: amam uns aos outros, ao passo que os romanos se odeiam mutuamente; são castos, principalmente os godos e os saxões; ignoram as impurezas do circo e do teatro; o deboche, entre eles, é crime, enquanto para os romanos é motivo de vã glória. Há pobres viúvas e órfãos que escolheram viver em meio aos godos e não se dão por frustrados. Os bárbaros são hereges, sim (professavam o arianismo), mas isto é culpa dos romanos, que lhes transmitiram a heresia.
§  A Cristianização dos povos invasores. Um dos casos mais efetivos foram os godos que foram evangelizados pelos arianos e através de Úlfilas (311-383); ordenado Bispo dos godos por Eusébio, Bispo ariano de Nicomédia, e que pregou por mais de quarenta anos a fé cristã ariana entre os seus compatriotas; empreendeu a tradução da Bíblia para o idioma godo e utilizou a língua goda para ministrar a liturgia. Desta forma, enquanto o Império Romano desmoronava, a Igreja Cristã fortalecia sua posição como agente político.
§  Relevância da Igreja Ocidental durante as Invasões Bárbaras
“A Igreja Católica não só eliminou os costumes repugnantes do mundo antigo, como o infanticídio e os combates de gladiadores, mas, depois da queda de Roma, ela restaurou e construiu a civilização” (WOODS, 2005, p. ?).
Tendo na figura “Bispo de Roma”, a Igreja torna-se um ponto estável em um mundo caótico em que tudo estremecia. O poeta Lactâncio, neste tempo, escreveu: “Somente a Igreja conserva e sustenta tudo
Surgem figuras de grande envergadura e piedade na Igreja que souberam dar sentido aos acontecimentos trágicos da queda de Roma: Bento de Núrcia, Agostinho de Hipona, Leão Magno e tantos outros, que do caos da barbárie, começaram a modelar uma nova Civilização, por amor a Deus e pela missão que Cristo lhes deu.
O historiador Daniel Rops conclui sobre esse momento crítico: “O maior serviço que o Cristianismo prestou ao século V, foi o de dar um sentido a seu drama, impedindo-os de permanecer inertes, sós e angustiados, à beira de um abismo para além do qual já não enxergavam”.
Agostinho escreve sua grande obra literária “Cidade de Deus” tendo esse cenário caótico como pano de fundo, ele disse: “Talvez não seja ainda o fim da Cidade, mas em breve a Cidade terá um fim”. “Nas piores circunstâncias é preciso cumprir o nosso dever de homens”. A confiança de que todos os acontecimentos, por mais caóticos que sejam, estão subordinados ao desígnio de Deus, foi a grande força do cristianismo para fortalecer os corações.
De Justiniano até Gregório (527-590) os anseios papais foram amenizados. Mas as nuvens enegrecidas vão se dissipando no horizonte, e uma nova atmosfera vai surgindo, trazendo para a Igreja Romana uma expectativa de grandes oportunidades.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Reflexão Bíblica

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Referências Bibliográficas
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[1] Godos, ostrogodos, visigodos, suevos, francos, germânicos, eslavos (compreendendo centenas etnias e tribos diferentes), vândalos, saxões, anglos, unos são exemplos de tribos bárbaras que aos poucos foram conquistando a Europa e os maiores deles “tinha em média apenas entre 50.000 e 80.000 pessoas, computados guerreiros, mulheres e crianças” (Franco Júnior, 2001, p.22). Todos os duros e contínuos embates entre romanos e estes grupos levaram à aceleração do que se convencionou chamar desintegração ou declínio do Império Romano.

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