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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

História da Igreja Primitiva: Definições e Razões Para Estudar a História da Igreja



            O que vem a ser “História da Igreja” e por que se deve estudá-la? Essas duas questões elementares deve ser sempre o ponto de partida de qualquer pesquisa ou estudo sério. Particularmente no que se refere à história da Igreja Cristã é muito importante termos em mente o que significa e quais as razões pelas quais devemos investir o precioso tempo em estudar seu desenvolvimento histórico. Entre tantas outras coloco apenas três definições do que vem a ser História da Igreja, por entender que elas abrangem os aspectos relevantes; em seguida verificaremos algumas distinções entre os vários termos ou terminologias envolvidas nesse estudo.
Definições
O lado espiritual da história dos povos civilizados desde a vinda do nosso Mestre” 
(H. M. Gwatkin).
A história da comunidade cristã e sua relação com o resto do mundo ao longo dos tempos” (A. M. Renwick).
A História da Igreja, então, é o registro interpretado da origem, progresso e impacto do cristianismo sobre a sociedade humana, baseado em dados organizados coletados por métodos científicos de fontes arqueológicas, documentárias ou vivas. É a história interpretada e organizada da redenção do homem e da terra” 
(E. E Cairns).
Distinguindo os Termos
Ainda que uma distinção deva ser feita entre os termos cristandade, cristianismo e igreja é preciso, entretanto, manter em mente que são termos intercambiáveis e permanentemente se relacionam em qualquer estudo sobre história da igreja.
Cristandade: Refere-se à influência da mensagem cristã que permeia uma sociedade. Isso estaria relacionado à cultura, especialmente no mundo ocidental. Houve um tempo em que a Europa esteve debaixo da influência da igreja cristã o que não significa que todos os governos ou cidadãos europeus fossem de fato e de verdade compromissados com a mensagem cristã. Um exemplo é o próprio Brasil que sofreu e ainda sofre uma influência cristã cultural, primeiro pelo catolicismo romano e posteriormente pelo protestantismo evangélico, o que não significou ou significa atualmente que todos os brasileiros são de fato compromissados com as verdades bíblicas.
Cristianismo: Aqueles países ou etnias em que a maioria de seus cidadãos faz uma profissão de fé cristã e estão inseridos em igrejas (organizações eclesiásticas) organizadas visíveis.
Igreja: A Igreja verdadeira e invisível é composta de todos os redimidos de Deus, independentes de localizações geográficas ou temporais, começando no dia de Pentecostes. Nem todos os estudiosos concordam que a igreja começou no dia de Pentecostes, pois foi gestada desde a eternidade,  mas a maioria vê a festa de Pentecostes como o início (nascimento) do pleno desenvolvimento da igreja. Todos os estudos teológicos distinguem entre a igreja verdadeira e invisível como um organismo, e a igreja professa e visível como uma organização.
Razões Para o Estudo da História da Igreja
A Importância do Trabalho Missionário: Na medida em que estudamos a  história da Igreja podemos perceber como a mensagem evangélica sai dos recônditos da Palestina judaica e alcança o mundo romano inteiro e tem chegado até os confins  da terra nestes mais de dois mil anos de existência da igreja. No aspecto negativo são também identificáveis os períodos em que indivíduos, grupos e movimentos falharam em sua fidelidade à Grande Comissão. Há longos períodos em que o esforço missionário foi esquecido.
O Desenvolvimento Doutrinário: Sabemos que Jesus Cristo não deixou uma única linha escrita, portanto, todas as doutrinas cristãs foram elaboradas no decorrer dos tempos. A definição do próprio cânon do Segundo Testamento foi definida oficialmente no século IV; o conjunto das doutrinas denominadas de ortodoxas foi definido após longos e até sangrentos Concílios cristãos, no transcorrer de vários séculos e posteriormente redefinidos no período da Reforma Protestante no século XVI. Apreender este aspecto da História da Igreja nos capacita com maior dose de precisão uma análise dos diversos sistemas doutrinários que permeiam as diversas formatações do cristianismo ao redor do mundo. Um exemplo clássico é o cristianismo Oriental e Ocidental em que afluem inúmeras semelhanças, mas se mantém também muitas distinções doutrinárias e eclesiásticas. Esse estudo das doutrinas não deve objetivar a radicalização e intolerância, mas deve contribuir para um alargamento da pacificação e tolerância com aqueles que pensam diferentemente. Foi nesse espírito que surge o termo “denominação” onde cada igreja denominacional tem suas definições doutrinárias peculiares, mas compactuam daquele conjunto de doutrinas eminentemente bíblica.  
Identificando as Heresias: Heresia aqui são todas as formulações doutrinárias ou teológicas que proliferaram em desarmonia com as formulações ortodoxas. É a grande oportunidade para uma análise da consistência das doutrinas cristãs e a percepção de que as “novidades” doutrinárias do presente são apenas reelaborações ou meras repetições das velhas “heresias” forjadas na bigorna da história da igreja cristã. Na medida em que se estuda estes desvios da ortodoxia teológica cristã é também a oportunidade para ratificar este conjunto de elaborações doutrinárias que tem permanecido norteando a igreja cristã em todos esses séculos.
Desenvolvimento da Organização Eclesiástica: A igreja cristã nasce de forma simples dentro do espírito comunitário. No livro de Atos temos uma self da simplicidade eclesiástica: apóstolos, presbíteros, diáconos. Sua liturgia conforme Lucas era: pregação apostólica, orações, ceia (partir do pão) e comunhão. Mas no desenvolvimento da igreja cristã sua organização interna vai se tornando cada vez mais complexas. A pequena e singela comunidade cristã vem a tornar-se uma organização poderosa, principalmente após a era do imperador romano Constantino. Ao estudarmos esse aspecto da história da igreja tomamos conhecimento de como as forma eclesiástica católica romana, luterana, episcopal, congregacional, presbiteriana e outras se desenvolveram. Também ajuda a entender a história do denominacionalismo, especialmente na América, onde existem uma pluralidade de diferentes grupos de cristãos professos.
Os Grandes Personagens: A história da Igreja é um registro de grandes homens e mulheres de Fé - teólogos, pregadores, leigos, etc. Grande parte da história da igreja é um estudo destes personagens e suas contribuições para o desenvolvimento da igreja cristã. Toda a ortodoxia e eclesiologia atual foram elaboradas e sustentadas por pessoas que deram suas próprias vidas em defesa delas. O contato com esses personagens, com suas qualidades e defeitos, deve acender em nós a chama de um zelo e valorização desta herança que recebemos, mas que em muitos momentos trocamos por um prato insignificante de lentilhas (como fez Esaú com sua progenitura) ou simplesmente jogamos fora de forma dissoluta (como fez o pródigo com a parte da herança recebida do pai). A pergunta: vale a pena lutar por esse conjunto de doutrinas ortodoxas hoje? A resposta fica mais clara e contundente quando conhecemos a vida daquelas pessoas que se gastaram e se deixaram gastar, em vários casos até à morte, em defesa destas verdades cristãs.
As Diversificadas Perseguições: As perseguições sofridas pelos cristãos e posteriormente pela igreja cristã ao longo dos séculos são páginas regadas por muitas lágrimas e sangue. Mas estas perseguições foram externas, como por exemplo as infligidas pelos imperadores romanos (lembrando que nem todos eles), mas também perseguições internas como as produzidas pela Inquisição Católica Romana, mas igualmente pelos diversos movimentos reformados, tais como os anabatistas que foram afogados de forma cruel. Ainda que repudiemos todas e quaisquer perseguições somos lembrados das palavras proferidas pelo próprio Senhor Jesus Cristo quando afirmou que o mundo odiaria o cristão e que os cristãos sofreriam muito por sua fé, certamente essas palavras de Jesus sustentaram e confortaram o coração de milhares e/ou milhões de cristãos em todo lugar e tempo e que foram e continuam sendo perseguidos e mortos por causa de sua fé cristã (como estão acontecendo na Coreia do Norte e nos países mulçumanos).  
Movimentos: Uma dos aspectos mais interessantes e que me atrai particularmente é o surgimento e desenvolvimento dos diversificados movimentos cristãos que surgiram dentro e fora da igreja organizada. Alguns desses movimentos foram importantes para reavivar as igrejas organizadas que estavam vivendo de forma letárgica e moribunda. Ainda que tantos outros movimentos tornaram-se perigosos e nocivos à vida da igreja cristã, ainda assim eles tornam-se relevantes, pois fizeram com que a igreja cristã reagisse, reafirmasse e valorizasse sua ortodoxia. O exemplo clássico é o movimento produzido por Macião, ainda no segundo século, que impactou todo o cristianismo da época e que forçou a igreja cristã a iniciar seu processo de estabelecimento de ortodoxia a começar pela definição do cânon do Segundo Testamento e a elaboração de um Credo básico da fé cristã, sintetizado no que passou a ser denominado de “Credo Apostólico”, não porque foi escrito pelos apóstolos, mas porque preserva a essência da pregação e ensino apostólico.
Efeitos na História Geral: A história humana jamais foi a mesma desde a entrada da igreja cristã no mundo. Inumeráveis vidas, povos e nações foram impactados e transformados pela mensagem poderosa da cruz. A educação cristã e as agências filantrópicas manifestam na prática o amor de Cristo no meio da sociedade humana, elevando muitos indivíduos e sociedades a um novo patamar moral.
Deus, em todas as gerações, transformou as pessoas com as boas novas de Cristo e nunca se deixou sem uma testemunha.

Quero concluir esse artigo introdutório com as palavras oportunas de Cairns:
 A História da Igreja fornece uma síntese do passado, uma explicação do presente, um guia para corrigir a conduta e motivos inspiradores para ilustrações boas e práticas para os pregadores e é um estudo libertador”.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
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