Translate

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

GLOSSÁRIO DE HERESIAS

            Desde os primórdios do cristianismo sempre surgiu ideias e conceitos divergentes que no todo ou em parte deturpavam os princípios bíblicos que ortodoxamente estavam sendo estabelecidos. O processo histórico dos dogmas do cristianismo ou a História dos dogmas é um tema fascinante para percebermos que o cristianismo é algo vivo, dinâmico e que foi sendo forjadas na bigorna dos séculos sob o fogo incandescente das batalhas teológicas.
            As heresias e seus hereges (aqueles que as ensinaram ou defenderam) nem sempre eram pessoas que desejavam destruir o cristianismo ou até mesmo negavam as verdades emanadas da Bíblia, em um número expressivo de casos é justamente o contrário, essas pessoas imbuídas de fortes convicções defendiam suas opiniões, contrastantes, entendendo que contribuíam para uma melhor interpretação das verdades bíblicas e, portanto, contribuíam para uma Igreja Cristã melhor. Todavia, historicamente podemos observar que apesar de toda boa vontade, ou não, essas opiniões divergentes se provaram incoerentes e inconsistentes com o estudo mais amplo e fecundo das Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Essas heresias não são privilégio do cristianismo primitivo ou mesmo do cristianismo católico, pois mesmo após a Reforma Protestante e do cristianismo dela emanado, continuam a proliferar aqueles que se posicionam à margem da ortodoxia clássica cristã. 
As heresias, ou seja, as opiniões divergentes em relação ao conjunto de verdades estabelecidas pela Igreja Cristã, podem ser divididas por temas ou áreas:  as relacionadas à Natureza de Deus; as relacionadas à natureza de Jesus; as relacionadas à natureza da Salvação; as relacionadas à natureza humana e as relacionadas à natureza da Igreja.
Esse pequeno glossário, que será paulatinamente ampliado, não tem pretensões maiores do que apenas indicar temáticas que já tem sido exaustivamente abordado em minúcias por uma infinidade de estudiosos ao longo desses XXI séculos de existência do Cristianismo.

ADOCIANISMO [Adopcianismo]: seus propositores declaravam que Jesus não foi realmente Deus, mas apenas um homem que revestido de graças especiais alcançou uma espécie de condição divina quando de seu batismo, no rio Jordão, efetuado por João Batista. Assim, se explica os poderes sobrenaturais e miraculosos de Jesus, bem como sua ressurreição. Essa ideia de que Cristo tinha sido apenas um ser humano que foi "adotado" como filho por Deus provou ser uma heresia persistente. Esse conceito, defendido ardorosamente por Teodoro da Bizantina, foi reiteradamente condenada pelo Papa São Victor I, que excomungou Teodoro. Em duas outras ocasiões 785 e 794 d.C. foi rejeitada pelo então Papa Adriano I. Por fim, quando trazida novamente à tona por Pedro Abelardo, no século XII, o Adocionismo foi novamente condenado pelo Papa Alexandre III em 1177.

ANOMEANISMO: vem da palavra grega anomoios – “dessemelhante” e se constitui em uma variante radical do arianismo. Os seus defensores consideravam que havia uma diferença de essência entre Deus e Cristo, uma vez que segundo eles Deus sempre existiu enquanto Cristo foi criado por Deus, de maneira que negavam a divindade de Jesus e refutavam a consubstancialidade e semelhança com o Pai. Também eram chamados de “aecianos” e “eunomianos” em referência aos nomes de seus dois maiores expoentes: Aécio, era sírio, diácono de Antioquia e estabelece suas teses a partir da dialética da Lógica clássica de Aristóteles, hábil polemista ; e Eunômio, da Capadócia, que se torna seu discípulo, todavia, com pouco tempo eclipsou o mestre por sua personalidade carismática e pela capacidade dialética. O Concílio de Constantinopla (381 d.C.) depôs Aécio do diaconato e pouco tempo depois Eunômio foi exilado. Foi Basílio de Cesaréia um dos que refutaram suas teses em seu tratado “Sobre o Espírito Santo”, de maneira que é possível resgatar a argumentação deles com base nas partículas ou preposições: de quem, por quem e em quem – pelas quais eles concluíram a diversidade de natureza do Pai, do Filho e do Espírito Santo. São denominados também de semi-arianismo e “radicais da segunda geração ariana”.   Apesar de ter constituído uma organização eclesiástica, centrada em Constantinopla, e investido vários bispos, após a morte de Eunômio (394 d.C.) essa comunidade e sua doutrina desapareceram. A maioria dos escritos de Eunômio foram queimados por ordem do imperados Arcádio, mas uma parte deles foram preservados pelos seus discípulos e podem revelar a sutiliza e sagacidade de sua mente lógica.


APOLINARIANISMO: vem do nome de seu mentor, Apolinário (310-390 d.C.), bispo de Laodicéia, na Síria (não confundir com Laodicéia na Ásia Menor), amigo de Atanásio e mestre de Jerônimo. Em seu labor para combater o Arianismo e estabelecer uma clara definição sobre a encarnação de Jesus, ele acaba por extrapolar os arraiais da teologia ortodoxa cristã. Sua doutrina, à semelhança dos teólogos de Alexandria, tem sido chamada de logos-sarx (Verbo-carne) e partindo da interpretação antropológica tricotômica (corpo, alma e espírito) ele concluiu que Cristo tinha um corpo humano, uma alma vivente, mas nenhuma alma racional (o centro da consciência, de tomada de decisões) que fora substituído em Jesus Cristo pelo divino Logos, ou Palavra de Deus. Ainda que seja interessante sua preposição ela esbarra no cerne da questão – Jesus deixa de ser plenamente humano, de maneira que ele não poderia ser o “representante/substituto legal” diante do tribunal da justiça divina. Gregório Nazianzeno argumenta contra a preposição de Apolinário declarando de que se o pecado tivesse contaminado apenas o corpo, esse Jesus seria suficiente para salvar os seres humanos, entretanto, o pecado contamina o ser humano em sua totalidade (corpo e alma) de maneira que o Verbo (Jesus) tinha que assumir a plenitude de nossa humanidade para ser o nosso salvador.  Esta teoria foi condenada nos sínodos romanos em 377 e 381 e pelo Concílio ecuménico de Constantinopla no último ano.

ARIANISMO: um conceito teológico que surgiu no século IV e que negava a divindade de Jesus Cristo. Seu mentor foi Ário (256-336), de onde vem o termo, um padre de Alexandria, que negou haver três Pessoas divinas distintas na Pessoa de Deus. Para ele, havia apenas uma pessoa, o Pai. Segundo a tese de Ario, o Filho foi criado (“Houve um tempo em que ele não era"). Cristo era, portanto, um filho de Deus, não por natureza, mas somente pela graça e adoção. Esta teoria logicamente esvaziava a doutrina da Encarnação de Deus em Cristo: se Deus não se tornou homem, então o mundo não foi redimido e a própria fé, eventualmente se dissolve. Arianismo foi formalmente condenado em 325 d.C. pelo primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia, que formulou e promulgou a versão original do Credo de Nicéia; mas o arianismo e semiarianismo, no entanto, continuou a prevalecer na sua forma original em muitas áreas por mais de um século. O Arianismo foi combatida por Atanásio de Alexandria (296-373), entre outros; mas a heresia, no entanto, persistiu, especialmente entre os bárbaros, por vários séculos.

DONATISMO: Surgiu no meio da Igreja Africana do século V e ensinava que a validade dos sacramentos depende do caráter moral do ministro dos sacramentos e que os pecadores não podem ser verdadeiros membros da Igreja ou mesmo tolerada pela Igreja se seus pecados são conhecidos publicamente. Essa interpretação doutrinária teve início quando do movimento cismático em que os rigoristas questionaram que um bispo de Cartago, Caecillian (311), não era um verdadeiro bispo, por ser considerado um traidor ao entregar as Escrituras paras serem queimadas durante a perseguição promovida pelo Imperador Romano Diocleciano e um dos bispos que o ordenou, Felix de Aptonga, também havia sido um traidor. Os donatistas passaram a ordenar os seus próprios bispos, um dos quais era Donatus, de onde emana o nome da doutrina. Para eles o Bispo tinha que ser tão santo quanto seus ofícios. O Donatismo foi condenado pelo Papa Melquíades (311-314) e pelo (local) Conselho de Arles, em 314, mas, no entanto, persistiu no norte da África até a conquista muçulmana no século VII. O Donatismo cresceu a partir dos ensinamentos de Tertuliano e Cipriano e teve em Agostinho (354-430) um opositor ferrenho.


EBIONISTAS: vem do hebraico e significa "pobre") eram judeu-cristãos, que floresceu na Palestina nos séculos II a IV d.C., que insistiam que além da fé em Jesus Cristo era necessário a observância da lei e dos costumes judaicos (circuncisão, observância do sábado), mas rejeitavam os sacrifícios. Rejeitaram as cartas do apóstolo Paulo, porque em suas epístolas ele defendia que os gentios convertidos estavam isentos das questões judaicas. Consideravam a pobreza um princípio básico do cristianismo e seus bens eram de propriedade comum. A maior parte deles viviam na Transjordânia e na Síria Oriental. Os ebionitas foram rejeitados tanto pelos judeus quanto gentios-cristãos. Mas foram diminuindo gradualmente seu numero e influência a partir do segundo século.

GNOSTICISMO: a proposta teológica deles é que a salvação vem através de algum tipo especial de conhecimento, geralmente alcançado por um grupo de elite especial. A ideias primárias de um embrionário gnosticismo já existia antes do cristianismo, e muitos advogam que posteriormente, na medida em que a mensagem cristã foi alcançando largas dimensões, os gnósticos começaram a se apropriar dos conceitos evangélicos e adaptá-los em seus próprios pontos de vista e para os seus próprios fins, inclusive produzindo pseudos-evangelhos, através dos quais divulgavam seus conceitos e penetravam nos círculos cristãos.  O gnosticismo nega pontos essenciais das doutrinas cristãs e são descritos "entusiastas especulativos" partindo de seus fundamentos platônicos e orientais. Os gnósticos como uma seita organizado ou corpo de crenças tem sido extintos, mas as ideias gnósticas persisti, permeando praticamente todas as formas de desvios da fé cristã, manifestada em todas as formas sincretistas de amalgamar o cristianismo bíblico com as demais expressões de religiosidade vigente nas sociedades.


MANIQUEUS: eram de origem persa e foram chamados por esse nome em razão de seu fundador ter o nome de Mani, o qual foi morto no ano 276, por ordem do governo persa. Os maniqueus davam ênfase e ensinavam uma vertente dualista: "O universo compõe-se do reino das trevas e do reino da luz e ambos lutam pelo domínio da natureza e do próprio homem." Recusavam o Jesus humano, porém criam em um "Cristo celestial". Eram severos quanto à obediência ao ascetismo, e renunciavam ao casamento. Os maniqueus foram perseguidos tanto por imperadores pagãos, como também pelos cristãos. Agostinho, um dos grandes teólogo da igreja, era maniqueu, antes de se converter. O espírito ascético e celibatário deles permeou por séculos muitos pensadores cristãos.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
me.ivanguedes@gmail.com
Outro Blog


Referências Bibliográficas
BERNARD SESBOUE, SJ (Direção). O Deus da Salvação – séculos I a VIII. Tradução Marcos Bagno. São Paulo: Edições Loyola, 2005, 2ª ed. [História dos Dogmas, Tomo 1].
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia. São Paulo: Hagnos, 2006. [v. 1].
GONZÁLES, Justo (Ed.). Dicionário ilustrado dos interpretes da fé. Tradução Reginaldo Gomes de Araujo. Santo André (SP): Editora Academia Cristã Ltda., 2005.


SCHULER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia. Canoas (RS): Ed. ULBRA, 2002. 

2 comentários:

  1. O que eu não posso compreender é porque as heresias são propagadas por pessoas "inteligentes" que ao me ver deveriam saber e aceitar a verdade e ensinar a verdade.

    ResponderExcluir
  2. A inteligência humana acaba sendo contaminada pelo pecado. Todavia, muitas vezes aquele que elabora um conceito equivocado ou diferente da ortodoxia vivente o faz com sinceridade. Para os judeus o cristianismo é um heresia do judaísmo é uma interpretação errada da Torá.

    ResponderExcluir