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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

PERSONAGENS DO PROTESTANTISMO – Zwinglio o Exegeta (1484-1531)

Zwinglio - A Bíblia e a Espada
seus instrumentos de trabalho. 

"O cristão nada mais é que um cidadão fiel e bom 
e a cidade cristã nada mais é que a Igreja cristã."
            Quando falamos sobre a Reforma Religiosa e/ou Reforma Protestante que ocorreu no século XVI, um trio de personagens se sobressai: Lutero, Calvino e Zwinglio.[1] Entretanto, se os dois primeiros são conhecidos por suas obras teológicas e exegéticas, Ulrico Zwinglio[2] (1484-1531) ficou caracterizado apenas por suas realizações eclesiásticas e seus esforços políticos para levara adiante o movimento reformatório nos Cantões Suíço.[3] O seu pensamento teológico e suas obras exegéticas foram praticamente ignoradas, como se fossem de valor menor do que seus dois contemporâneos mais vistosos. Todavia, suas contribuições nestas duas preciosas áreas do conhecimento teológico-exegético foram e continuam sendo de grande valia para uma compreensão mais ampla do movimento reformado, cujas ondas sísmicas ainda se fazem sentir nos dias atuais.
            Em 1522 inicia seus estudos de hebraico, ainda que reconhecesse as dificuldades inerentes nesta língua, mas determinou-se a perseverar até que pudesse alcançar algum sucesso. Neste período teve oportunidade de encontrar o grande professor de hebraico Andreas Boschenstein, que havia ensinado Melanchthon em Wittenberg e que elaborara um gramatica da língua hebraica. Juntamente com outros zuriquenhos, entre os quais Felix Manz, dedicou-se ao aprendizado do idioma que seria fundamental para seu trabalho exegético e teológico.
            Com dedicação e determinação alcança um nível elevado no conhecimento da língua hebraica, que juntamente com outros companheiros acadêmicos tornaram possível empreender uma tradução dos textos bíblicos com o objetivo de oferecer pela primeira vez uma Bíblia que poderia ser compreendido pelo povo suíço. Sua maior contribuição neste empreendimento inédito esta na sua tradução dos Salmos, que apesar de estarem pronto em maio de 1529, somente puderam ser publicados após a morte de Zwinglio, em 1532. Uma importante e avaliada opinião pode ser encontrada nas palavras do Professor V. Ryssel a partir do Salmo 23:
“A tradução de Zuinglio do ano 1529 é uma tradução sem erros, a tradução mais literal possível das expressões hebraicas, que nem sempre leva em grande consideração as expressões alemãs. O verbo hebraico dá também, segundo suas condições etimológicas, o mais preciso wieder (de volta) na frase “er bringt meine Seele wieder” (ele traz de volta minha alma), ao contrário de “erfrischt” (refrigera) na tradução de 1531 que traz o sentido segundo a forma alemã. Não é segundo a forma alemã também “in meinem Angesicht” (em minha face) no versículo 5, que na tradução posterior foi melhorado. Por outro lado a frase “auf den Pfad der Gerechtigkeit” (na trilha da justiça) no versículo 3, que se manteve na tradução posterior, não se origina de uma falta de consideração com as expressões alemãs, já que no versículo 2 não se traduz “Wasser der Ruhe” (águas da tranquilidade), mas “ruhige bzw. stille Wasser” (águas tranquilas). Zuínglio no entanto o traduz assim porque ele assume que a expressão (= em caminhos retos) não pertence mais à imagem, mas – como isto acontece frequentemente na poesia hebraica – abandona esta imagem e então deve ser entendida em sentido ético. Deve-se assumir isto também porque em Zuínglio, mais do que em Lutero, encontra-se o esforço de expressar mais claramente possível a imagem do pastor. Por isto ele traduz no versículo 2a: “er ernert (alpet) mich” – na Bíblia de 1531 “er macht mich lüyen” = ele me deixa em paz – e no versículo 2b: “er treibt mich”, cuja expressão também é usada no versículo 3 (e aqui também pela Bíblia de 1531), onde no entanto se encontra na última assim como em Lutero, no versículo 2b, o mais neutro “er führt mich”. Uma tentativa muito bela de interpretar a imagem mais vividamente é apresentada no versículo 4, onde Zuínglio traduz o verbo do antecedente condicional não pelo simples “gehen” (ir) ou “wandern” (caminhar), mas é expressa muito incisivamente pela expressão “sich vergehen” (= sich verlaufen, sich verirren, morrer, se perder). A tradução de 1531 escolheu a melhor palavra para a imagem no versículo 4, “Todesschatten” (sombras da morte), no lugar da menos precisa “Tod” (morte), isto talvez porque também era a primeira vez neste ínterim que esta expressão mais precisa (que hoje também é livremente indicada) se tornou conhecida. O relato literal no versículo 5 “mein Trinkgeschirr ist voll” (meu copo está cheio) seria adaptado para o estilo alemão, na verdade de forma completamente oportuna, substituído por “und füllest mir meinen Becher” (e enche meu cálice). (EGLI, 1900, p. 156-157).  
           
Bíblia de Zurique 1531
Impressa por Christoffel Froschauer 
Deste modo, aproximadamente três anos antes da publicação da famosa Bíblia de Wittenberg (1534), a cidade de Zurique já possui uma Bíblia na linguagem vernácula, em um belíssimo trabalho tipográfico ilustrado em parte por Holbein.[4]
            A partir de 1525 ele estabelece um curso de Bíblia livre para o clero e estudantes da escola de latim e o curso acontecia diariamente, exceto as sextas-feiras.[5] Auxiliado por estudante ou um colega desenvolvia seus comentários sobre os textos bíblicos, utilizando como ferramentas o texto hebraico e a septuaginta (versão grega do texto hebraico), o texto grego do Novo Testamento e a tradução latina da Vulgata (versão oficial da Igreja Romana). Desta maneira ele podia comparar os diversos textos e esclarecer os equívocos encontrados nas traduções, justificando sua exegese. Estas aulas públicas de Bíblia receberam oficialmente, em 1535 o nome de “Propheizei [Profecia]”, mas conforme informação de Pollet, “estava provavelmente em uso antes dessa data” (1988). Este termo grego, utilizado por Paulo (I Co. 14.1-3), era utilizado com o sentido de instruir, exortar e encorajar e desta forma, Zwinglio indica que suas exegeses dos textos bíblicos estavam debaixo da direção e influência do Espírito Santo. No período de 1525-1531 ele principia estudos que abrangeram 21 livros do Antigo Testamento, seguindo uma ordem cronológica; nas Sextas-Feiras estudava-se o Novo Testamento: os Evangelhos, as Epístolas Paulinas e a Primeira Epístola de João.
            Ao optar por uma predominância dos livros do Antigo Testamento em seus estudos públicos, bem como em seus tratados teológicos, revelam o propósito que ele perseguia de submetê-los ao crivo dos ensinos neotestamentários. Para Zwinglio o estudo e a compreensão da mensagem veterotestamentário deve ser feita à luz de Cristo e não o inverso; sempre se poderia encontrar no Antigo Testamento o que foi claramente expresso em Cristo. Desta forma, ele sempre foi resistente a discutir o Novo Testamento no Antigo, mas não o impediu de utilizar amplamente os ensinos do Antigo para combater os conceitos formulados pelos anabatistas.
            Os anabatistas entendiam que o batismo deveria ser a resposta consciente e explicita de uma experiência pessoal de conversão, portanto não aceitavam o batismo infantil.[6] A argumentação de Zwinglio tomava como princípio o preceito da circuncisão instituída por Deus em relação aos israelitas; assim como a circuncisão não era a causa da salvação do israelita, mas se constituía em um sinal da Aliança, o batismo infantil cristão também se constituía em um sinal de que o filho(a) do cristão estava inserido(a) na Nova Aliança em que seus pais foram inseridos mediante a profissão de fé em Cristo.  Todavia, para Zwinglio a circuncisão não se constituía em uma confirmação da fé de Abraão, mas um compromisso de conduzir seus filhos a Deus dentro dos termos da Aliança anteriormente estabelecida. Ele assim se expressa: “O nosso batismo tende a mesma coisa que a circuncisão anteriormente, é o sinal da aliança que Deus fez conosco através de seu Filho”. (STEPHENS, 1999, p. 263).[7]
            Os anabatistas entendiam que todo o Antigo Testamento havia perdido seu valor mediante a Nova Aliança estabelecida por meio de Cristo, mas Zwinglio rejeita esta tese, pois segundo ele esta interpretação dos anabatistas acabava por rejeitar a Deus, que se revela em ambos os Testamentos.[8] Para fundamentar o valor do Antigo Testamento ele invoca quatro textos do Novo Testamento: Mt 22.29; João 5.39; Ro.15,4 e 1Cor. 10.11, os quais trazem em comum o apelo ao Antigo Testamento como fundamento da mensagem cristã. Em 1 Coríntios 10.11 esta escrito: “Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos tempos” (NIV), referindo-se à experiência de Israel no deserto. Segundo ele, conforme seu “Prefácio aos Profetas”, incluindo também o verso 6 de 1 Coríntios 11, todos os acontecimentos registrados no Antigo Testamento se revestem de simbolismos e servem para nosso uso, pois, foram escritos para o nosso benefício. Esta é a convicção que esta subjacente da leitura que Zwinglio faz de todo o Antigo Testamento à luz da revelação de Cristo (STEPHENS, 1999, 107).[9]
            Sua convicção de que a Antiga e a Nova Aliança eram basicamente uma, lhe permitiu usar os textos veterotestamentário em seus debates com os católicos e também com Lutero, a cerca da Última Ceia, onde ele a coloca em paralelo com a Páscoa judaica (Êxodo 12.11). Em seus trabalhos exegéticos, as analogias entre a circuncisão e o batismo, a Páscoa e a Última Ceia emergem com constância, como realça Stephens: “o método comparativo é um elemento constante nos escritos de Zwinglio, tanto nos comentários como em outros textos” (1999, p. 92).
            É importante destacar ainda que Zwinglio estava plenamente convencido de que toda a Bíblia foi escrita para o bem da humanidade. Em sua ênfase do sentido natural da Escritura ele acaba por destacar o sentido moral e espiritual dos textos bíblicos. Para ele o sentido moral do texto é a aplicação natural para o ouvinte, que vai trazer compreensão correta do texto e consolo para a vida dele. Outra vertente de sua exegese estava na sua preocupação filológica, pois entendia a necessidade de pregar o texto bíblico em sua expressão autêntica – por isso gastava tanto tempo em conhecer profundamente a língua hebraica e grega, em quais os textos bíblicos foram escritos.
            Por fim, se Zwinglio minimizava a utilização da interpretação alegórica, por outro lado ele utilizou extensivamente a interpretação tipológica. Para ele as figuras de Noé, Isaque, José, Moisés apontavam para a revelação de Cristo. Evidentemente que em alguns casos ele torna-se arbitrário em suas intepretações tipológicas, mas com certeza muitas histórias e personagens do Antigo Testamento encontram seu significado e relevância na revelação cristológica do Novo Testamento.


Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira - Mestre em Ciências da Religião.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Outro Blog
Reflexão Bíblica


Referencias Bibliográficas
BROTTON, Jerry. Uma história do mundo em doze mapas. [Tradutor: Pedro Maia Soares]. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
DREHER, M.N. A crise e renovação da igreja no período da reforma. [ Coleção Histórica da Igreja], v. 3. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 62-65.
EGLI, Emil. Zwingli als hebraer. Suiça: Journal Zwingliana, Swiss Reformation Studies Institute, 1900 [1/8]. Disponível em: http://www.zwingliana.ch/index.php/zwa/article/view/2163/2073. Acesso em 15/09/2014. [Tradução: http://www.e-cristianismo.com.br/pt/outros-reformadores/256]
LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. (Capto. 7)
MAINKA, Peter Johann. Huldrych Zwingli (1484-1531), O Reformador de Zurique – um esboço biográfico. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2001. http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/viewFile/2758/1893.
RAATH, A.W.G. e FREITAS, S.A. Calling and resistance - Huldrych Zwingli’s (1484-1531) political theology and his legacy of resistance to tyranny. South Africa: Department of Constitutional Law and Jurisprudence University of the Free State. Disponível em: http://puritanism.online.fr/puritanism/Calling%20and%20Resistance.pdf. Acessado em 15/09/2014.
STEPHENS, W. Peter. Zwingli le théologien. [Histoire et Société]. Genève: Labor et Fides, 1999.
POLLET, J. V. Huldrych Zwingli et le Zwinglianisme. Paris: Vrin, 1988.


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[1] Apenas sete semanas separam o nascimento de Lutero e Zwinglio, e ambos foram coautores do movimento da Reforma Protestante. Enquanto os 500 anos do nascimento de Lutero (10/11/1983) foi amplamente divulgado com artigos nas mais importantes revistas [Times, Newsweek, The New York Times Magazine e National Geographic] e celebrações nas Igrejas e Academias por todo o mundo; o aniversário de 500 anos de  Zwinglio (01/01/1984) passou despercebido, exceto em Zurique e arredores, seu lugar de nascimento e morte.
[2] O próprio reformador mudou a grafia de seu nome. O nome de batismo era Ulrich Zuínglio, em referência ao santo católico Ulrich de Augsburg. Nos dias de estudante latinizou o nome para Udalricus e posteriormente optou por Huldrychus (gracioso, benevolente), com a qual passou assinar suas correspondências. Mas nos documentos oficiais de Zurique manteve-se seu nome original “Meister Uolrich” (ROTHER, Rea. Ulrich, Huldreich oder Huldrychus? Disponível em: http://www.zh.ref.ch/a-z/zwingli/lexikon-h/huldrych-ulrich. Acesso em 15/09/2014.
[3] É importante realçar que os conceitos fundamentais do pensamento político posteriormente implementado dentro do movimento reformado deve ser atribuído aos trabalhos iniciais de Zwinglio, que pode ser legitimamente considerado como o “pai” do Pensamento político reformado. Seus conceitos foram transportados por Heinrich Bullinger, politica inglesa e João Calvino na reforma escocesa. (RAATH e FREITAS, p. 01).
[4] A Bíblia de Zurique tem uma longa tradição originária do reformador Huldrych Zwingli e seu grupo de tradutores. Em 1524 foi publicada a primeira parte da tradução contínua. Em 1531 foi publicada a Bíblia completa em Zurique, também chamada de "Bíblia de Froschauer" em homenagem ao famoso impressor de Zurique Christopher Froschauer, trazendo como ilustração “o primeiro mapa publicado em uma Bíblia. O tema era o êxodo do Egito” (BROTTON, 2014). Ela surgiu três anos antes da tradução da Bíblia do reformador alemão Martinho Lutero. Nos anos seguintes, a tradução foi trabalhada em várias ocasiões. As últimas ocorreram em 1907 e 1931. Graças a sua linguagem clara e compreensível, a Bíblia de Zurique é considerada um clássico. Muitos a consideram a tradução para o alemão mais fiel ao idioma original.
[5] Nas sextas-feiras ele pregava em Salmos na Praça do Mercado da cidade, de maneira que não somente os moradores urbanos, mas também os habitantes das zonas rurais podiam livremente ouvir sua exposição.
[6] Ainda hoje muitos ramos evangélicos brasileiros que não batizam crianças: Batista, Assembleia e outros.
[7] Para ele a exigência dos anabatistas em rebatizar, equivaleria a uma re-crucificação de Cristo.
[8] Este interpretação dos anabatistas, depreciando o valor do AT esta muito próximo da interpretação de Marcião (séc. II d.C.) que foi implacavelmente combatido pelos chamados Pais da Igreja e condenado como herege. (cf. http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/2013/10/fichario-biografia-marciao-de-sinope.html).
[9] Na verdade ele esta seguindo a forma de interpretar o AT feito pelo apóstolo Paulo, conforme Gálatas 4 e também em 2 Coríntios 8 – portanto, a interpretação de Zwinglio nada tem de platônico, mas é um método histórico-cristológica. 

Um comentário:

  1. Obrigada por escrever sobre este personagem da reforma, por você e sua dedicação tenho tomado amor pela Teologia e pela História Antiga, estou começando, engatinhando, sempre que o professor fala sobre a história da teologia eu lembro de você e assim nos estudos em casa. Deus te abençoe!

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